De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a fé influencia na saúde física, mental e biológica dos seres humanos
Por Ana Karina Talarico
Uma das demonstrações de fé mais conhecidas do Brasil ocorre no mês de outubro, quando milhares de devotos saem de diferentes cidades do país rumo ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, localizado no Vale do Paraíba, para homenagear, no dia 12, a Padroeira do país. Os romeiros, como são conhecidos esses peregrinos, andam quilômetros para pagar promessas, agradecer por graças alcançadas e pedir bençãos em suas vidas. Uma demonstração de pura fé.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a fé influencia na saúde física, mental e biológica. Ela pode reduzir os riscos de doenças como diabetes, doenças cardiovasculares, respiratórias, infartos, insuficiência renal e acidente vascular cerebral.
Em entrevista publicada no ano passado no Jornal “Estado de Minas”, o pastor Antonio Junior, um dos maiores influenciadores digitais do mundo cristão no Brasil, avaliou que a ciência está cada vez mais validando a fé como algo importante para o bem-estar físico e mental. “Nós cristãos acreditamos que o nosso corpo é templo do Espírito Santo (1 Coríntios 6.19-20) e por isso temos a consciência de que temos de cuidar bem dele, com alimentação, exercícios e cuidados médicos. A fé nos torna conscientes de que se o nosso corpo é templo do Espírito Santo e Deus habita em nós, então não podemos deixar em ruínas a morada de Deus. Cabe a nós zelar pela manutenção desse templo", disse ao periódico.
Fides et ratio (fé e razão) é uma expressão usada na filosofia cristã explica o padre Thiago Cosmo, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, que fica em Roma, na Itália, e professor de Metafísica na Faculdade Paulo VI, em Mogi das Cruzes.
“Esse é, inclusive, o nome de uma carta muito conhecida escrita pelo Papa São João Paulo II, na qual ele afirma que fé e razão são duas asas que elevam o espírito humano ao mais alto grau até a contemplação da verdade. Assim sendo, fé e razão – entendida como ciência - são duas realidades que se complementam e se auxiliam mutuamente”.
Mas como definir a fé?
“Eu diria que a fé é o dom de acreditar e se relacionar com o Absoluto. E entendê-la como dom significa acolhê-la como um presente que nos foi dado. Neste caso, é um dom comum a todas as pessoas, e que possibilita a abertura para uma realidade que vai além do imediato ao nosso redor. A partir dessa relação, dessa amizade com o Transcendente, é possível nutrir as virtudes necessárias para se viver bem, superando as dificuldades da vida, até o ponto de, inclusive, alcançarmos essa realidade superior”, afirma o sacerdote.
A União entre Fé e Ciência
Em 2010, o jornal Correio Braziliense publicou uma matéria sobre a relação da fé e da ciência. Segundo a reportagem, um estudo realizado na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, mostrou que a religiosidade fortalece pacientes que lutam contra o câncer. A matéria ainda trazia uma informação relevante sobre o assunto: “Uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Duke, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, comprovou que pacientes que se valem de práticas religiosas apresentam 40% menos chances de sofrerem depressão durante o tratamento não apenas do câncer, mas das doenças em geral. Ao que tudo indica, a fé representa um reforço para o sistema imunológico”.
O Padre Thiago endossa essas informações. Para ele, a fé é um elemento muito importante não somente num processo de cura, mas também, em relação ao modo como se enfrenta uma situação de enfermidade.
“Quando consideramos a pessoa como totalidade dos elementos físico, espiritual e psicológico, é possível entender que a fé ilumina todas as áreas da vida humana e, consequentemente, pode conduzir à cura”, coloca o religioso.
A aposentada Maria Talarico Moreira, de 64 anos, tem certeza disso. Há um ano e meio ela descobriu que estava com câncer (ovário e trompas).
“Foi muito difícil aceitar, mas eu fui com muita fé e coloquei tudo nas mãos de Deus, porque eu sabia que isso não me pertencia. Graças a Deus eu operei, estou bem e tenho mais quatro anos de tratamento pela frente, mas eu tenho certeza que a minha fé me curou. Deus me curou. A minha fé foi o principal motivo para eu querer viver. A fé remove montanhas. Se eu não tivesse fé não sei se aguentaria”, declara emocionada.
O padre Thiago completa o pensamento da aposentada.
“A fé remove montanhas tanto exteriores como interiores e, talvez essas, as interiores, sejam as mais difíceis de remover. A abertura ao Transcendente, provocada pela fé, dispõe nossa interioridade às coisas boas, como sentimentos e atitudes nobres. A oração, por sua vez, seja ela mental ou verbal, é a manifestação daquilo que está dentro de nós, logo, é possível estabelecer um diálogo com Aquele que nos deu a fé, percebendo que não estamos distantes dessa realidade superior”.
Marisa ainda deixa um recado para quem está passando por isso.
“Peço a todos que estão nessa situação, em tratamento, que estão com câncer, que não percam a fé, ela é muito importante. São duas coisas que andam juntas, a fé e a esperança. Deus vai passar na frente. Eu só tenho a agradecer. Em primeiro lugar a Deus, em segundo a minha família, que também tem muita fé. Então creiam. Façam a prevenção. Tudo que é descoberto no começo é mais fácil”, finaliza.
Pandemia
O padre Thiago também deixa uma palavra para reflexão.
“Mais do que nunca, no contexto de pandemia e pós-pandemia, é necessário exercitar a fé. Esse dom tão maravilhoso que nos foi dado não pode ficar de escanteio. Eu acredito muito na força interior de cada pessoa, naquela capacidade de transformação que começa no nosso interior e pode alcançar a muitos. Parece-me que o grande problema em questão seja a atual necessidade de ter tudo sob nosso controle. E num relacionamento – nós falamos que a fé é relacionar-se - em um contexto de abertura e amizade, o confronto com o outro pode ser bastante exigente. E, então, nos perguntamos: existe grandeza sem confronto?”, questiona.
O sacerdote conta que conhece muitas pessoas que, mesmo passando por grandes provações, nunca se deixaram abater porque tinham uma grande fé.
“E me refiro não somente à fé católica, mas entendendo a fé como disposição interior a uma amizade maior. Conheço, inclusive, pessoas que, mesmo não alcançando a cura física, realizaram seu encontro com Deus na mais absoluta paz, exatamente porque estavam consoladas e fortalecidas pela fé. Nessa dinâmica relacional, na qual somos inseridos pela fé, é importante considerar a realização do plano divino na nossa existência”, conclui.
A visão de um mastologista
Para o mastologista e obstetra, Adriano Baeta, a medicina é como se fosse uma ciência exata, mas no organismo pode ter um universo de reações inesperadas.
“Não é uma ciência exata porque cada organismo tem uma reação. Mas ela trabalha em cima de evidências. Ou seja, se o mundo inteiro faz algo que eu talvez ache que não dá certo, todos trabalharam em cima de anos, décadas e aí eles têm evidências clínicas de milhares de pacientes sob estudo. Então o que vale não é minha experiência, mas o que o mundo viu em várias evidências”, explica.
Para Baeta, não tem como não unir a ciência e a fé. A ciência busca a matemática da cura, mas nosso corpo é um universo e cada pessoa responde de um jeito.
“Quando a pessoa acredita na cura, ela acredita na ciência, no homem, ela vai buscar a salvação. É por causa de fé que ela vai buscar sua cura. Não adianta ela buscar a cura sem ter fé. Acredito que a fé faz a pessoa se reerguer mais facilmente, porque quando ela entra numa guerra derrotada antes de começar a batalha tem mais chances de não a concluir. Se a pessoa tem fé vai com tudo e pode vencer. Acredito que a fé é o carro-chefe para quem vai fazer um tratamento, para quem busca a ciência, que sozinha pode curar, mas a mente fica abalada mesmo curada. A pessoa vai arrastar a vida inteira uma doença já combatida. Então é importante justamente a pessoa ter fé porque ela leva a cura física e mental”, opina.
Atualmente Baeta está escrevendo um livro intitulado “A palavra pode curar”.
“O nome do meu livro tem dois sentidos: a palavra de Deus leva seus fiéis a salvação espiritual e a palavra do homem faz as pessoas acreditarem na sua vitória e no tratamento orgânico. Então através da palavra de um médico, de alguém que está perto de um paciente, uma pessoa que esteja entregando os pontos, pode voltar a luta ou a pessoa que acabou de receber um diagnóstico enxergar que é só ‘arregaçar as mangas’ para chegar lá na frente. Que cada pessoa tem um destino e ele vai depender muito de como se ache no caminho”, afirma.
O especialista completa dizendo que a pessoa que se entrega à doença não vai ter êxito da mesma maneira que quem se entrega totalmente ao tratamento.
“Como ela vai chegar lá na frente. Ela vai chegar à vitória através do seu esforço e não existe a vitória se não existir bons soldados, o paciente é um soldado e o médico um estrategista. Então eu trabalho com câncer há 22 anos e sou formado há 25 e eu sempre abordei minha paciente dessa maneira. Eu tento fazer com que ela vá para o Centro Cirúrgico com ‘faca nos dentes’ e sabendo que ela vai sair da sala melhor que entrou. Ela entrou com uma doença e vai sair sem ela. Então ela precisa entender que ela não está indo para um fuzilamento. Ela está indo para o tratamento e a cura. Ela vai sair com uma ferida, com dor, mas vitoriosa. Mesmo que saia de lá com o esforço da dor ou da ferida recuperatória, ela saiu de lá vitoriosa. Quando tem que fazer quimioterapia, ela pensa ‘eu não mereço’. Tem que pensar: ‘Eu mereço cada gota dessa medicação pois vai me curar’.
O médico ainda recomenda a seus pacientes pensar de uma forma positiva.
“A fé que ela tem no tratamento, a leva a chegar numa vitória. Existem sim pessoas que não conseguem vencer, mas a pessoa que vai com força e fé vai chegar muito mais fácil. Esse grande soldado vai ter mais chance de sobreviver”, finaliza.
O mundo das pesquisas
Existem muitas pesquisas no mundo sobre a fé e a ciência. Há mais de um século o canadense William Osler, ícone da medicina moderna, escreveu um artigo com elogios sobre às crenças das pessoas: “a fé despeja uma inesgotável torrente de energia”.
Em 2004, foi publicada uma pesquisa no São Paulo Medical Journal, pertencente à Associação Paulista de Medicina sobre o poder da prece na recuperação de pacientes com câncer. No mesmo ano, a ciência ajudou a explicar a fé com o geneticista americano do National Cancer Institute, Dean Hamer. Ele anunciou a descoberta dos “genes da fé” (VMAT2), chamados por ele de “genes de Deus”. De acordo com o especialista, eles regulam no cérebro a ação dos neurotransmissores dopamina, ligada ao humor, e serotonina, relacionada ao prazer. Hamer explicou na época, que nós somos programados geneticamente para ter experiências místicas e que levam as pessoas para algo novo, ouvem Deus falar com elas.
Para Nicholas Wade, autor de The Faith Instinct (“O instinto da fé”, sem edição no Brasil), de 2009, a religião sempre exigiu tanto esforço (de união) que não pode ser encarada só como um acidente evolutivo”. Segundo Karen Armstrong, autora do livro “Os 12 Passos para uma Vida de Compaixão”, essa união foi questão de sobrevivência por milênios. Para ela, o homem primitivo precisava dividir os poucos recursos existentes e muito antes do surgimento das grandes religiões, altruísmo e generosidade já eram características essenciais de um bom líder.
No mesmo ano, foi divulgada uma pesquisa que analisou 42 estudos sobre o papel da espiritualidade na saúde. Mais de 126 mil pessoas foram envolvidas nesse processo. O resultado revelou que frequentadores de cultos religiosos pelo menos uma vez por semana tem 29% mais chances de aumentar seus anos de vida em relação àqueles que não vão a nenhum lugar. Os entrevistados religiosos eram mais comprometidos com a própria saúde.
Ainda em 2009, o cientista Andrew Newberg, professor da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, publicou seu livro “How God Changes Your Brain” (Como Deus muda o seu cérebro), em que afirma: ‘quanto mais pensamos em Deus, mais intensamente serão as alterações dos circuitos neurais’. Uma outra pesquisa realizada na Universidade Thomas Jefferson, também na Pensilvânia, mostra que a cura física pode acontecer como consequência do poder da oração. O estudo revelou que religiosos ativam áreas específicas do cérebro, ou seja, há poder na oração. Isso foi constatado por ressonâncias magnéticas do cérebro.
O professor da Escola de Economia de Paris, Andrew Clark, um dos autores de um estudo europeu, apontou que as religiões auxiliam as pessoas a superar choques e a não se desesperarem tanto com os tropeços da vida. De acordo com a pesquisa, os desempregados religiosos apresentaram menor queda no indicador de bem-estar se comparados aos não religiosos.
Essas são algumas das muitas pesquisas que existem sobre o assunto. O que se pode perceber é a união entre a fé e a ciência certamente pode trazer muitos benefícios às pessoas.
Rompimento x Reconciliação
A edição da Revista Veja de outubro de 2015 fala sobre o rompimento entre ciência e religião, que ocorreu no século XVIII, com o Iluminismo, na França. O movimento viu na razão e no progresso científico um instrumento de emancipação do homem, colocando os dogmas cristãos em xeque. A Igreja reagiu com a publicação da primeira encíclica da história, assinada pelo papa Bento XIV (1675-1758). O rompimento de fato aconteceu no século XIX, quando Charles Darwin negou o criacionismo, definindo a clássica teoria da evolução das espécies.
Em 1943 houve uma tentativa de reaproximação pelo papa Pio XII ao escrever a encíclica Divino Afflante Spiritu (Sob a Inspiração do Espírito). No documento, ele reconhecia hipóteses defendidas pela ciência, como a da evolução e a do Big Bang.
Atualidade
Em julho deste ano, em uma mensagem gravada aos participantes do “Ciência para a Paz”, o Papa Francisco afirmou que "a ciência é um grande recurso para a construção da paz". Ele denominou esse encontro como ‘um testemunho de que não pode haver oposição entre fé e ciência’. "Nunca como neste momento foi necessário um relançamento da pesquisa científica para enfrentar os desafios da sociedade contemporânea", disse Francisco. Na ocasião, o pontífice confiou aos cientistas "a tarefa de dar testemunho de que é possível construir um novo vínculo social, comprometendo-nos a fazer a pesquisa científica junto a toda a comunidade" e pediu-lhes "que acompanhem as novas gerações na formação, ensinando-lhes a não ter medo do esforço da pesquisa”.
Portanto, pode-se dizer que a ciência e a fé andam juntas, se completam e dão sentido à vida. Cabe a nós buscarmos o conhecimento para poder usufruir dessas duas bençãos.